terça-feira, 17 de junho de 2008

"Leitora, agora és lida. O teu corpo é submetido a uma leitura sistemática, através de canais de informação tácteis, visuais, olfactivos, e não sem intervenção das papilas gustativas. Até o ouvido desempenha o seu papel, atento como está os teus arfares e às tuas vibrações. Não é só corpo que em ti é objecto de leitura: o corpo conta enquanto parte de um conjunto de elementos complicados, nem todos visiveis e imediatos: o enevoar dos teus olhos, o riso, as palavras que dizes, a maneira de prenderes e soltares os cabelos, o modo de tomares a iniciativa e de te retraíres, e todos os sinais que estão na margem entre ti e os usos e os costumes e a memória e a pré-história e a moda, todos os códigos, todos os pobres alfabetos através dos quais um ser humano julga em certos momentos estar a ler outro ser humano.
E entretanto tu também és objecto de leitura, ó Leitor: a Leitora passa agora em resenha o teu corpo como se corresse o índice dos capítulos, ora o consulta como que tomada de curiosidades rápidas e precisas, ora se detém a interrogá-lo e deixando que lhe chegue uma resposta muda, como se cada busca parcial só lhe interessasse com vista a um reconhecimento especial mais vasto. Ora se fixa em aspectos insignificantes, talvez pequenos defeitos estilísticos, por exemplo a maça de Adão proeminente ou o teu modo de enfiar a cabeça no côncavo do seu pescoço, e serve-se disso para estabelecer uma margem de distanciamento, reserva crítica ou familiaridade brincalhona; ora pelo contrário o pormenor descoberto por acaso é valorizado desmedidamente, por exemplo a forma do teu queixo ou uma tua especial mordidela no seu ombro, e a partir deste ponto de partida ela ganha impulso, percorre (percorreis em conjunto) páginas e páginas de alto a baixo sem saltar uma vírgula. Entretanto, na satisfação que sentes pela maneira com ela te lê, pelas situações textuais da tua objectividade física, insinua-se uma dúvida: que ela não te leia a ti uno e íntegro como és, mas te use, que use fragmentos de ti retirados do contexto.
(...)
A leitura que os amantes fazem dos seus corpos difere da leitura das páginas escritas por não ser linear. Começa num ponto qualquer, salta, repete-se, volta atrás, insiste, ramifica-se em mensagens simultaneas e divergentes, torna a convergir.(...) Nela pode-se reconhecer uma direcção, o percurso para um fim, dado que tende para um clímax.(...)Amanhã Leitor e Leitora, se estiverem juntos, se se deitarem na mesma cama como um casal assente, cada um acenderá o candeeiro na sua mesa de cabeceira e mergulhará no seu livro; duas leituras paralelas acompanharão a vinda do sono; primeiro tu e depois tu apagarão a luz; retornados de universos separados, encontrar-se-ão fugazmente no escuro onde todas as distâncias se apagam, antes que sonhos divergentes os arrastem também tu para um lado e tu para outro. (...)"
Italo Calvino

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